sábado, 15 de outubro de 2011

Hidromel: entre mito e história.



Um dos temas mais interessantes de estudos vincula-se ao texto, às narrativas e ao próprio pensamento histórico, aparentemente contrapostos ao pensamento e às narrativas míticas, mas que nem sempre se encontram em posições diametralmente opostas, sendo outrossim complementares entre si, cada quais com suas lógicas internas, seu caráter auto-explicativo e instrutivo.


Ao contrário da tradição de pensamento vinculada pelos historiadores gregos Heródoto e, principalmente Tucídides, em que mithos e logos seriam formas de pensamento opostos, os estudiosos atuais observam a forma como ambos são construídos, bem como as interpolações existentes entre uns e outros.


Como bem lembrado por estudiosos franceses do porte de François Hartog e Marcel Detienne, o pensamento mítico fazia parte da palavra ritualizada, não baseada em princípios de contradição, mas de eficácia, possuindo sua própria lógica interna, não sendo a toa que a palavra mitologia (mito e logos) servia para definir seu conjunto de temas e narrativas.


Dito isto, gostaria de explicar o que me levou a este assunto. Alguns alunos meus do 3º Ano do Ensino Médio me pediram para escrever um texto histórico sobre a origem da bebida hidromel, visto que irão fermentar água e mel para a feira de ciências da escola onde trabalho. Diante da dificuldade desta pesquisa e diante de minha negativa em apoiar uma historiografia hegeliana baseada na busca das origens das coisas, escrevi um texto sobre algumas interpolações existentes entre história e mito no que tange a bebida.

Abaixo segue o referido texto:


Não sabemos a origem do hidromel, variação do melikraton (vinho e mel) dos gregos e romanos. Segundo Plínio o Velho, filósofo naturalista latino do século I D.C, a bebida teria sido criada por Aristeu, o apicultor, filho do Deus da luz Apolo com a mortal Cirene. Podemos afirmar apenas que os povos germânicos da Europa Pré-Cristã, tais como cimbrios e teutões consumiam uma bebida semelhante com base na fermentação da água e do mel, utilizando-a em cerimônias ritualísticas de consumação de casamento, de onde deriva o termo Lua de Mel.


Foram muitos os povos que conheceram os prazeres desta especiaria antiga, nos mais variados lugares do mundo e nas mais distintas épocas e contextos históricos, desde maias, astecas, hindus, celtas e escandinavos. Tanto que um famoso conto nórdico expressa a criação do hidromel e sua relevância no interior da cultura deste povo. Segundo consta na Eda Saga compilada pelo historiador islandês, Snorri Sturluson, os deuses, em um tempo remoto teriam cuspido em um jarro de ouro de modo a selar a paz entre aesires (deuses celestes) e vanires (deuses selvagens da fecundidade).


Do interior do jarro saiu Kvasir, divindade da sabedoria, que, em suas viagens pelos nove mundos chegou ao reino dos anões, onde foi assassinado. Ao seu próprio sangue os anões misturaram mel em dois caldeirões, e a bebida resultante foi batizada de hidromel, a “Bebida dos Deuses”. Depois disto os Gigantes invadiram a morada dos anões, levando dali a bebida sagrada, forçando o próprio deus supremo nórdico, Odin a recuperá-la.

"Kvasir - Divindade da Sabedoria, assassinado pelos anões."

Kvasir

De posse dos deuses, a bebida passou a ter propriedades proféticas e poéticas, não sem antes ser ensinada aos mais sábios e talentosos mortais, significando que seu consumo traria uma espécie de epifania mágica capaz de levar os homens, tanto à sabedoria do mundo mágico dos deuses quanto à imaginação poética dos recitadores de mitos e fábulas celestes. Entre mito e história, o doce hidromel surgiria aos mortais, quase que como uma fermentação mágica sussurrada nas mentes mais esclarecidas.

"Odin - O deus supremo nórdico, sentado em seu trono ao lado de Hugin e Munin, seus corvos. Divindade da sabedoria, é também o deus guerreiro da aristocracia dos nórdicos."
Odin

Em suma, um texto curto, mas que em minha opinião reflete a importância dos contos míticos em muitas culturas do passado. Assim sendo, não é nada anti-histórico tratar de um aspecto cultural de uma sociedade do passado a partir de uma narrativa mítica, não porque eu acredite na presença dos deuses entre os homens nórdicos ou gregos antigos, mas porque estes povos um dia acreditaram nesta presença, e se não acreditaram fielmente, tornaram tais mitos tão presentes em suas culturas, que logo os mitos se tornaram parte delas.

Verdade ou não, o hidromel faz parte da cultura de muitos povos antigos, e como bebida destes povos, era servido em cerimoniais, utilizado nas libações ou mesmo como bebida de poetas e profetas mágicos, vinculando nas mentes ébrias o mundo material dos homens ao mundo imaterial dos deuses. Neste sentido, tais mitos não deixam de integrar a história destes povos.

10 comentários:

  1. Ótimo texto, Marco.
    Eu gosto bastante desta origens fantásticas dos objetos, costumes e fenômenos naturais que os povos criam na incapacidade de saberem de uma explicação plausível.
    Já a mitologia grega cheia de psicologia meia boca eu não curto muito não.
    Seu post me lembrou do filme do Thor que, infelizmente, ficou fraquíssimo.
    Uma pena, o Deus do Trovão merecia mais.
    Valeu.

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  2. Valeu Jacques.
    Também acho legal esse tipo de estudo sobre origens de objetos com elementos mitológicos fantásticos.
    Eu gosto da mitologia grega. Acho que em Homero, os elementos psicológicos dão lugar para a moral heróica e isso é o ponto forte da mitologia dos gregos arcaica, em minha opinião.
    Sobre o Thor, sabe que eu gostei do filme?
    Sempre vi o Thor da Marvel (antes de Walter Simonson, que trouxe o elemento épico e mitológico asgardiano para o personagem, além do Bill Raio Beta) de modo diferente ao deus da mitologia, mais heróico, no sentido HQ, e com as histórias mais de pancadaria gratuita, como no filme. Pode ser só impressão.
    Mas entendo tua opinião, que não é diferente da de muitos amigos meus que também não curtiram o filme e gostam muito do deus do trovão.
    Abraços.

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  3. Simplesmente "uau"!
    Parabéns, Marco! Me deu vontade de jogar RPG!

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  4. Me deu vontade de encher a cara e, depois, sair em Lua de Mel (não sabia a origem da expressão)!!!

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  5. Valeu Rafael.
    Sério?Jogar RPG?
    Olha que até que não sou dos piores mestres.
    abs.

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  6. Opa! Eu sou um péssimo mestre... mas me considero um bom jogador... Sempre procuro fazer algumas coisas diferentes em jogo. Uma hora dessas...

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  7. Muito bom texto.
    Vejo o grupo de Conan se formando.

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  8. Pois é.
    Podemos combinar.
    Posso mestrar mini gurps Conan

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